domingo, 24 de agosto de 2008

Carta ao pai

Eu escrevo uma carta a meu pai mas já não falo das memórias.
Nem faço hipóteses sobre o que teria sido.
É uma carta-presente.
Sobre os momentos em que me sinto como um relógio que parou
ou como uma porta que nunca fecha.
Sobre os momentos peitoril de janela, se eu não morasse em um arranha-céu.
Sobre uísque em copo baixo e pouco gelo em dias como qualquer outro.
Sobre o elefante que me leva pra passear nos sonhos que eu nunca tive.
Sobre noites em claro em que somos felizes e também sobre noites brancas.
Sobre nuvens carregadas, sobre céu alaranjado e sobre os medos.
Escrevo sobre roupas desconfortáveis e sapatos apertados.
E grito pra ele cada uma das angústias que não quero dividir com ninguém.
Teço discursos sobre tudo e sobre o nada.
Sobre minha forma estranha de cortar batatas.
Sobre o absurdo dos dias e a cumplicidade dos sonhos.
Sobre o escrever, sobre amar, sobre viver.
Revelo minhas impressões sobre a sua partida.
A persistência da falta quando não há mais a primeira dor.
E conto pra ele o que escondo de mim mesma.
Sobre a duração duvidosa da alegria e sobre a decisão de ir embora ou não.
Sobre estar no trampolim a um passo do salto mortal
e sobre o próprio salto que ainda não chegou ao fim...
É sobre isso que escrevo a meu pai.
E por falta de endereço, eu publico aqui.