Quando eu nasci, nosso país já estava mergulhado na ditadura e só foi conseguir se livrar dela vários anos mais tarde, tantos que eu me lembro de ver algumas imagens do processo. Eu lembro de ouvir tocar "Coração de estudante" e estranhamente me emocionar, mesmo sem saber exatamente o que estava acontecendo.
Eu acabei de ler o depoimento da cineasta Lúcia Murat* sobre sua prisão e tortura no Doi-Codi e mais uma vez esse tema se revira dentro de mim. Eu tenho um tio que foi morto pelos militares durante a ditadura, um tio que eu na verdade não conheci, assim como não conheci outros tantos que morreram com ele, mas que eu admiro e respeito demais. Pode parecer estranho, mas é possivelmente meu tio mais querido. É certamente o que mais me ensinou. Disso não tenho dúvida.
Quando leio sobre a ditadura e as torturas, leio como se fossem todos meus tios e tias. Porque eles eram todos meus iguais, jovens lutando por um ideal. Lutando por liberdade, pela minha, pela sua liberdade. Lutando para que eu um dia pudesse dizer tudo o que eu penso sem ser igualmente presa e torturada.
Lendo as atrocidades que esses desumanos militares praticaram, minha boca seca, meu estômago se revira, meu sangue ferve. Porque eu sou humana. E eu não canso nunca de falar desse assunto. Porque é preciso lembrar, para evitar que tudo aquilo se repita. E eu tenho muito nojo e um pouco de medo quando ouço pessoas dizendo que sentem saudade desse período ou fazendo apologia a ele de alguma forma. Em que planeta essas pessoas estavam e estão?
Quando eu leio um depoimento como o da Lúcia Murat, eu tenho certeza que ninguém merece passar por isso. Muito menos aos 22 anos. E ela não foi a única. Nem mesmos eles, os torturadores, mereceriam ser submetidos aos horrores que eles repetidamente praticaram.
Outro dia ouvi uma alta patente dizer que só se escuta a versão deles, e por "deles" ele quis dizer dos torturados (imagino que ele não fazia referência aos assassinados nesse caso). Eu sinceramente adoraria ter ouvido ou ouvir a versão dos torturadores, devidamente interrogados em processos adequados em que seus crimes estivessem sendo julgados.
Mas eu tenho também um desejo secreto, de colocar numa sala esses senhores e seus simpatizantes, para obrigá-los a ouvir junto com suas famílias, filhas, netas, todos esses depoimentos com riqueza de detalhes. Só para no final perguntar para eles:
- E a aí Coronéis? E aí simpatizantes e defensores da ditadura, e consequentemente das torturas e crimes a ela relacionados, e se fossem suas irmãs, suas filhas, suas netas? E se fossem as suas mulheres queimadas, espancadas, achincalhadas, torturadas ou mortas por pensarem de forma diferente e lutarem para serem ouvidas?
E eu sigo acreditando que NENHUMA ditadura se justifica, absolutamente nenhuma.
*Leia aqui o depoimento completo da cineasta.
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